A igreja e a noite
Há algum tempo tenho pensado muito sobre duas coisas que são presentes na minha vida, a saber – a igreja e a noite. Desde criança eu fui levada pelos meus pais às reuniões da igreja, escola dominical, cultos de estudo bíblico e louvor e todas essas atividades que existem na igreja evangélica. Minha eterna gratidão por isso. Minha formação na igreja é rica e valiosa e foi lá, bem como no meu lar que aprendi tudo que sei sobre Jesus, sobre fé e sobre Deus. Sem contar na melhor e maior herança que tenho, que é a musical. Cresci em ensaios de coral, madrigais de alto nível, cantei no coral aos 11 anos de idade, e cantava até Aleluia de Handel, ou seja, uma influencia musical que dificilmente, crianças que não frequentam igrejas, teriam. Eu tive. Peguei gosto pela música e se tem uma coisa que mexe comigo, é ela. Mas não é sobre música que quero falar exatamente agora, a música deixa mais pra o fim, porque no fim, ela está em tudo.
De
uns anos pra cá, tenho frequentado assiduamente bares com música ao vivo e
caraokes, e confesso, adoro. Nessas andanças, por conhecer tão bem o ambiente
da igreja e o ambiente da noite, pude facilmente traçar algumas linhas que
comparam os dois ares. Sim, comparam. Não tenho o menor medo disso, porque
estou falando de algo que vivo e não de parecer que ouço de terceiros.
O
que mais me chama atenção é, de um lado, alguns religiosos que defendem que
sentar em bares nas rodas de riso, bebida, cigarros e música, é sentar na roda
dos escarnecedores, conforme narra o salmista em Salmos 1, que diz que feliz é
o homem que não se assenta na roda dos escarnecedores. Para iniciar, vale dizer
o significado de escarnecer, no Aurélio:. Fazer escárnio de algo ou
alguém; zombar ou ridicularizar alguém ou alguma coisa: seus filhos a
escarneceram. Censurar sem
piedade, ridicularizar ou zombar. Fazer
pouco de alguém - escarnir. (Etm. escar(nir) + ecer).
Sabendo disso, posso continuar dizendo que muito me deixa chocada quando escuto
religiosos fazendo a comparação de que pessoas que se reúnem em bares,
refeições, rodas da música, são escarnecedores, e mais pasma ainda eu fico ao
relembrar que as maiores rodas de escarnecedores que eu estive assentada, eram
formadas por pessoas da igreja, dentro da própria igreja, escarnecendo de
outras pessoas da própria igreja! Hoje, vejo o quanto isso é atemorizante!
Outras rodas, muito significativas porque, ou eu estava nelas, ou as via, eram
formadas por pessoas da minha família, sim, meus parentes, lamento se você é um
deles, e digo mais, ainda estão aí, em plena atividade, escarnecendo, julgando
e condenando. Todos da igreja, todos religiosos. Todos ativistas do "reino".
Não
quero pormenorizar as minhas impressões, porque certamente elas são só minhas
opiniões, mas um fato que desejo muito mencionar é que, ao conviver com as
pessoas nos bares, sinto uma energia tão diferente da que a que sinto no
ambiente eclesiástico, no aspecto musical especificamente. Por exemplo,
participei do denominado grupo de louvor, pelo menos 20 anos, sim, 20 anos. Nesses 20 anos, pude conviver e
muitas vezes ser uma dessas pessoas que se feria quando não cantava, que se
ofendia quando precisava ser corrigida ou ensinada na arte de cantar, nesse
tempo, eu vi briga de egos e disputa pelo poder na esfera musical, gente que
brigava pra cantar mais que o outro, músicos que lutavam pelo reconhecimento
vaidosamente, gente que não se alegrava quando alguém cantava e tocava muito
bem. Gente mesquinha, medíocre e egoísta. E não é coisa do passado. Hoje, ainda
convivo com gente que faz biquinho porque pessoas novas aparecem no cenário
aonde tudo era só seu. Gente que fica magoadinho porque aparecem pessoas
dispostas a fazer bem o trabalho que fazia de qualquer maneira. Hoje, nos
bares, sento-me para ouvir uma bela canção e me deleito com ela, daqui um
pouco, sobe ao palco uma pessoa que também gosta de cantar, e eu me deleito com
aquela voz, com aquela canção, com aquela energia, e tenho quase que um ímpeto
de ir até aquela pessoa, abraçá-la e agradecer por me dar de presente sua voz,
sua canção, sua alegria. E eu atendo meu
ímpeto, e beijo quem canta, beijo suas notas e frases, e me sinto tão feliz por
poder dizer: Guria, você canta demais, que energia maravilhosa!!! E daqui a
pouco, alguém me chama pra cantar, sem sequer saber meu nome, e gosta do que
vê, e olha pra mim e diz: Que coisa linda eu vi em você, que energia massa você
tem, sua voz me tocou, sua música entrou em mim! Mas pra os meus queridos e
medíocres religiosos, eu estava cantando pra o Diabo! Nas mesas de bar, eu
encontro a despretensão, eu não encontro a hierarquia invisível que permeia o
mundo repleto das vaidades gospel. Nas mesas dos bares que bebo e converso com
meus amigos, vulgo: roda dos escarnecedores, a gente fecha os olhos e canta de
peito aberto algumas canções de paz que nos fazem sentir mais perto de Deus,
mais até que algumas canções como “eu sou um com você no amor do nosso Pai”, ao contrário dos meus irmãos de bancos de
igreja que fecham os olhos para não precisar olhar pra cara do outro e dizer
essas sentimentalidades que sequer passam pela sua cabeça durante a semana,
difícil sentir tudo isso só no domingo a noite.
Eu
queria muito que as pessoas sentissem que a música não tem religião, que a
bíblia diz que todo dom perfeito vem de Deus, do Pai das Luzes e portanto,
enquanto eu quiser, a minha música é pra Deus, não importa se estou cantando
Grande é o Senhor, ou se estou cantando Garota de Ipanema, a minha vida inteira
canta porque Ele, o grande Senhor me presenteou com o amor pela música e com a
alegria.
Engraçado
pensar que, quantas vezes senti vontade de chorar quando, ao cantar no cenário
religioso, passeando meus olhos na plateia do culto, vi olhos de nojo, caras ranzinzas,
face de quase ódio por estar vendo ali um ser tão escória como eu, louvando.
Ora.... Nunca li na bíblia: todo ser que não tem pecado, louve ao Senhor, todo
ser que não bebe, não fuma e não ouve música secular louve ao Senhor. Mas li
assim: Todo ser que respira, louve ao Senhor. E eu vou louvar.
Quando
canto num bar, não busco aplauso, não busco nada, considero um singelo presente
de Deus poder espalhar minha voz na vida de gente que não sabe quem eu sou, e
que não me mede e não me julga, mas sente o amor de Deus através dos tons e
cores que a música faz voar. Quando canto na igreja, considero mais ainda um
presente por estar louvando a Deus com minha comunidade de fé, mesmo diante de
gente que me julga e me mede e me sentencia indigna.
Se Deus quiser calar minha voz um dia, Ele o fará, enquanto isso, continuarei cantando, em igrejas, bares, velórios, teatros, trios elétricos, chuveiros, puteiros, e como diz Marisa Monte, 'aonde me levar a minha voz, eu vou', assim, leve, sem a menor culpa, me alimentando mais do amor de Deus revelado através de gente pagã - no conceito cristão - de gente que bebe, fuma, se droga, mas cheia de amor, carente de amor, gente igual a mim, gente que muito se distancia da tão superior classe cristã, outro nível(!!!), embriagada nos seus egos, nos seus conceitos, lotadas do seu raso amor, que em nada, nada, nada, lembra o amor do meu Jesus.